Nunca é tarde para (re)começar. A máxima nem sempre é válida para o esporte de alto rendimento, que exige o vigor físico característico da juventude, mas um brasileiro radicado nos Estados Unidos tem mostrado no último ano que a exceção pode contrariar a regra. E que exceção é a carreira de Karue Sell.
Um mês antes de completar 30 anos, Sell decidiu voltar ao tênis profissional. No dia 16 de outubro do ano passado, ele apareceu na posição 1505 do ranking da ATP. Neste domingo, quase um ano depois, ele venceu o argentino Hernan Casanova por 2 sets a 0 e avançou para a rodada final do quali do Challenger 100 de Campinas, disputado nas quadras de saibro da Sociedade Hípica. Nesta segunda, Karue Sell deve aperecer na posição 275 do ranking, um crescimento de mais de 1200 posições.
A história se torna ainda mais incrível pelo “combustível” para a retomada da carreira: um canal no Youtube. Há cinco anos, Karue Sell criou o MyTennisHQ com um amigo brasileiro. Começou a postar vídeos com dicas para jogadores amadores e fez sucesso. Chegou aos 145 mil inscritos e mais de 23 milhões de visualizações. O amigo deixou o projeto e o nome do canal mudou para Karue Sell HQ. E o sucesso online proporcionou o retorno financeiro para o tenista retomar a carreira.
“Não pensava em jogar profissionalmente. Comecei a fazer o Youtube para criar um negócio online porque sempre gostei, mas depois de quatro anos apareceu a oportunidade de voltar. Comecei a jogar os torneios de UTR, que tem nos Estados Unidos. Estava jogando bem, treinava com caras de ATP e sentia que estava jogando o meu melhor tênis. Como o canal tinha crescido, mais de 100 mil seguidores, apareceu a oportunidade de me manter financeiramente com o canal, apareceu um patrocínio também, que ajuda com algumas coisas. Eu pensei por que não? 30 anos? Hoje em dia as pessoas jogam até 34 anos, 35, 36. Apareceu a oportunidade de jogar sem pensar na parte financeira. Não estou aqui para ficar milionário, não estou aqui para ganhar muito dinheiro, estou aqui para tentar jogar o melhor tênis que eu posso”, afirmou Karue Sell ao DIÁRIO DO TÊNIS, logo após a vitória deste domingo em Campinas.
Karue Sell nasceu em Jaraguá do Sul, Santa Catarina, e fez todo o processo natural de um aspirante a tenista profissional no Brasil, tendo disputado os principais circuitos juvenis no país. Em 2012, com 19 anos, ele foi para os Estados Unidos para defender a Universidade da Califórnia no College. Foi capitão da equipe entre 2012 e 2016, mas patinou no momento que é o maior desafio para qualquer tenista: a transição do amador para o profissional.
Em 2018, Sell chegou a aparecer na posição número 372 do ranking por duas semanas seguidas, mas depois as dificuldades, sobretudo financeiras, venceram.
“Quando eu joguei no passado, cheguei a 370 do ranking e sempre achei que poderia ter ido mais longe, mas estava sempre com um pé dentro e um pé fora. Jogava uns torneios e tinha de dar umas aulas”, explicou Sell.
Em 2019, a carreira foi interrompida. Karue Sell passou a traballhar na equipe técnica da tenista japonesa Naomi Osaka, então número 1 do mundo, além de seguir nas aulas. Trabalhou também com o ex-número 1 do mundo, André Agassi. Além do inglês fluente que ele usa nos vídeos e nas quadras, naqueles momentos em que os tenistas reclamam dos próprios erros, Karue Sell aprendeu muito.
“Nesses últimos anos estive tão perto de jogadores e treinadores, tive experiências com a Naomi, o Agassi, você vai aprendendo sobre tênis, acaba tendo essa maturidade e o esporte fica mais simples. Queria me provar que eu poderia bater meu melhor ranking, que eu já bati, e vamos ver onde dá para chegar”, diz.
A próxima meta é disputar o quali do Australian Open. A distância para o objetivo hoje é de cerca de 50 pontos e posições no ranking. Em geral, tenistas classificados entre os 230 primeiros do ranking conseguem vagas nos qualis dos Grand Slams.
“Tenho que ganhar bastante ponto, mas estou perto. Se fizer uma final ou ganhar um challenger eu chego ali nos 230. Essa é a meta imediata. Para o ano que vem eu queria só jogar challenger e entrar nos 200. Agora cada vez fica mais difícil subir. Quero ter uma temporada inteira em Challenger. Se eu conseguir fazer isso eu viro top-100. A ideia é jogar e entender se eu vou conseguir chegar no Top-100 ou não”, afirmou Sell.
Entrando ou não no Top-100, o agora tenista não pretende aposentar o youtuber. Não somente pelo lado financeiro, mas pela satisfação pessoal de mostrar a trajetória nos vídeos e porque o canal o ajuda na disciplina que o esportista precisa.
“No tênis as pessoas só prestam atenção no Topo, no Top-10 e o resto dos jogadores, se você não se vende, ninguém vai te vender. O meu conteúdo me vendeu e o conteúdo me mantém determinado. Não quero mentir que estou tentando jogar profissional. Estou tentando jogar, tenho que fazer físico, tenho que mostrar meus altos e baixos. É importante isso porque, às vezes, sou meio relaxado, não quero fazer as coisas e meu treinador de físico me bota no lugar. E ali sou eu e o Youtube, não tem ninguém no meio, eu gosto disso e a galera está curtindo”, afirmou.
A galera está curtindo mesmo. O último vídeo, publicado há 5 dias, teve mais de 50 mil visualizações. Em Campinas, após a vitória sobre Hernan Casanova, Karue Sell tirou algumas fotos e deu autógrafos para alguns garotos que estavam ali porque o conheciam do Youtube. Um deles perguntou o motivo dele falar em inglês na quadra.
“Assim ninguém me entende”, brincou Karue, que enfrenta nesta segunda o holandês Ryan Nijboer, número 253 do ranking, em busca de uma vaga na chave principal do Challenger de Campinas.
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